sábado, 12 de setembro de 2009

"Fígado pra mim tá ótimo!"




Quando eu era criança, domingos eram meus dias preferidos. A rotina daquele dia era singela, porém especial para mim. Acordávamos cedo, eu e minha mãe, e íamos à praia. Como nós duas somos o que se pode chamar de “desprovidas de melanina”, a regra era pegar apenas o sol saudável da manhã. Assim, logo após as onze horas recolhíamos nossas coisas e seguíamos para nossa escolha daquele domingo: um restaurante.
Cada domingo escolhíamos um diferente, e sempre que inaugurava um lá íamos nós experimentar. Quando já tínhamos ido a todos, refazíamos a peregrinação pelos que já conhecíamos e preferíamos.
Bons tempos aqueles em que eu ansiava chegar o domingo só para não comer comida caseira, e sim “comida de restaurante”. Às vezes eu tentava levar mamãe no papo e convencê-la a ir almoçar, durante a semana mesmo, fora. Não adiantava. A não ser por força maior, os almoços fora de casa eram reservados aos domingos. Ela dizia que era para manter a graça, para que não deixasse de ser o nosso “programa especial de domingo”. E assim, muitas vezes eu ficava emburrada e fazia bico para a comida caseira que eu era obrigada a comer.

Até que eu cresci. Até que meus horários começaram a se desencontrar dos da minha mãe. Até que ela resolveu que eu já era grandinha o suficiente para me virar e saber me alimentar na rua. E aí, adeus comida caseira, olá almoços de domingo. Todos os meus dias viraram domingo à hora do almoço.
Explico: o horário de trabalho da minha mãe não permite que ela faça o almoço em casa e, como não temos uma secretária, empregada, cozinheira, diarista ou seja lá como vocês chamam (não cabe nos nossos costumes, no nosso orçamento nem na nossa paciência), nada de almoço esperando por mim no fim da manhã.
Quando eu chegava do colégio, mais tarde, da faculdade e hoje em dia do trabalho, mamãe já havia saído para o trabalho e por lá mesmo ela almoçava. A mim, restava procurar um lugar para providenciar um almoço, e garanto a vocês que é melhor comprá-lo, porque não sou o que se pode chamar de às na cozinha. Pelo bem do meu organismo e pela integridade da cozinha, melhor deixar as panelas para quem as sabe usar.


Eu sei, eu sei... herdei o mal da mulher moderna: desprovida de prendas domésticas. Além do mais, dizem que esses dotes pulam uma geração, e se minha mãe é uma cozinheira de mão cheia, sabe costurar, bordar, pintar e pratica até jardinagem, só me restou como futuro de vida arranjar um diploma de nível superior.
Em outras décadas a propaganda de um pai sobre sua filha para um pretendente era tipo “Fulana faz um bolo de milho maravilhoso, além de conseguir preparar um jantar completo de primeira qualidade”, ou tipo “Fulana bordará todo o enxoval de vocês, desde as toalhas de mesa até os lençóis”.


Bom, no meu caso, meu pai teria que fazer uma propaganda minha mais voltada para meus dotes intelectuais e falar da minha extraordinária capacidade de me dar super bem com a sogra (não estou sendo irônica, isso é sério. Um dia talvez escreva um post sobre isso).

Pois bem. E hoje minha vida é uma peregrinação pelos restaurantes, botecos, lanchonetes ou qualquer outro lugar que venda algo comestível no horário do almoço. Legal, não é? Não, não é!
Pense no seu restaurante favorito, aquele que serve a carne que você adora. Ou aquele que tem uma massa divina e seu dia é mais feliz só porque você a comeu. Aquele que tem a comida mais simples, ou a mais requintada. A mais saudável ou a mais não-saudável. Não importa qual seja. Eu digo: almoce lá todos os dias, e você vai se desesperar.
Eu também tinha meus restaurantes favoritos. Até que eu tive que frequentá-los diariamente. E aí comecei a procurar outros restaurantes, e também enjoei desses. E depois passei para as lanchonetes (consegui enjoar de Mc Donald’s) e também de todos os lugares que se vende comida. Já fui dos restaurantes japoneses, passando por churrascarias e até PF’s, daqueles que você compra o almoço e leva de brinde o cheiro da comida impregnado na sua roupa, cabelo, pele e etc.
Não preciso nem falar que todos os self-services de todos os shoppings daqui já foram repetidos milhares e milhares de vezes por mim. E cheguei ao ponto até de saber quando um deles aproveitava a comida do dia anterior para fazer um outro prato no dia seguinte (“Huumm... esse bolinho de carne está parecendo aquele assado de ontem”).

Hoje quando alguém me convida para almoçar na sua casa, só falto pular de alegria. O tempero caseiro é artigo raro hoje em dia para mim, então não banco a orgulhosa quando recebo convite para almoçar na casa de amigo, namorado, parente, vizinho, o que for. Vou com o maior prazer.
Só quem tem uma rotina alimentar como a minha sabe a falta que comida caseira faz. Mas meu namorado, por exemplo, acostumado a ter uma mesa posta sempre esperando por ele no café da manhã, no almoço e no jantar (casa sempre cheia de gente tem desses privilégios) me olhava perplexo não entendendo o prazer com o qual eu comia um fígado acebolado em uma das vezes ele me convidou para almoçar na casa dele.
E pensar que quando ele fez o convite ele disse “o almoço aqui em casa hoje é fígado, mas peço pra Graça fazer outra coisa pra ti”, ao que respondi felizona “fígado pra mim tá ótimo!”




Minha mãe até hoje não acredita nesse episódio.




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terça-feira, 8 de setembro de 2009

De dentro para fora


Só quem tem uma tatuagem sabe que depois da primeira agulhada sempre fica aquela vontadezinha latente, ainda que tímida, de fazer uma segunda. E às vezes uma terceira. Aí vem a quarta. Provavelmente uma quinta e assim sucessivamente.
Mas não importa quantas tatuagens você já tenha. Não importa se você já é um “gibi” (como diz uma amiga minha) todo desenhado. Cada tatuagem deve ser pensada e repensada como uma coisa única e realmente séria. A razão disso é meio óbvia: é pra sempre.
Não se iluda com o pensamento que um tratamento a laser vai resolver seu arrependimento, porque (tentar) apagar uma tatuagem com laser dói dez vezes mais do que fazer uma, é caríssimo e o resultado não é garantido. Ou seja: depois de todo esse sofrimento físico e financeiro, pode vir o sofrimento psicológico de descobrir que aquele desenho continua na sua pele.

Algumas pessoas pensam que quem tem tatuagem sempre incentiva outras a fazerem uma também. Como se isso fosse uma moda ou um produto legal que você experimentou e indica para os amigos. Bom, não é o meu caso.
Quando alguém fala para mim “estou pensando em fazer uma”, juro que paro o que eu estiver fazendo e converso a sério com a pessoa. Dizer um alegre “Que legal! Te dou todo o apoio!” seria irresponsabilidade minha. Sempre falo da minha experiência com tatuagem, da vida real depois que se faz uma, do dia-a-dia com um desenho no corpo e dos prós e contras.

A minha intenção é fazer a pessoa analisar e realmente pensar se ela quer de verdade uma tatuagem ou se simplesmente “acha legal a idéia”. Tudo isso para evitar um arrependimento futuro, que depois ainda pode sobrar para mim (“Você me incentivou a fazer! Agora por sua culpa minha vida está arruinada!” e coisas do tipo). Se depois disso a pessoa ainda quiser fazer a tattoo, dou todo o apoio, vou no studio junto, dou pitaco no desenho e até deixo apertar minha mão para extravasar a dor na hora H.

Deixem-me esclarecer uma coisa: quando fiz minhas tatuagens não as fiz no intuito de chamar a atenção. Isso pode soar estranho aos ouvidos de quem não entende verdadeiramente o propósito de uma tatuagem, mas esses desenhos na pele são mais para mim mesma do que para os outros; tem mais a ver com o que eu quero dizer para mim mesma do que para o mundo.
É como uma lembrança diária de certas coisas. Para ser mais específica, no meu caso, é uma lembrança diária, e em desenho, do que eu sou e do que eu quero ser.

É isso aí mesmo: tatuagem tem significado para quem as leva na pele. Ou pelo menos deveria. A gênese dela está intimamente ligada a significados, remontando à época pré-histórica, onde os homens desenhavam em seus corpos essas linhas para marcar os momentos da vida biológica e social, e representar experiências. Tanto quanto uma cicatriz pode contar uma história, uma tatuagem também pode fazê-lo. E se você pensar friamente, tatauagem é uma cicatriz, só que com uma forma específica e colorida.

Por isso, tatuagem não tem que ser bonita aos olhos dos outros, não tem que agradar aos outros. Eu respeito quem não gosta de tatuagem, ou quem não gosta das minhas tatuagens. Só não consigo não responder a quem critica meus desenhos pelo simples fato de não ter um significado para ele.
Como uma vez que uma criatura disse para mim que até curtia tatuagem, mas achou “ralada” a minha fada porque era uma coisa sem significado, e então emendou dizendo que se ele fosse fazer uma, seria o rosto da mãe dele. Eu disse “é verdade, minha fada não tem significado nenhum para você. É por isso que ela está na minha pele, e não na sua. Tanto quanto seria absolutamente sem propósito o rosto da sua mãe estar no meu corpo. É por isso que ele vai estar em você, e não em mim.”
Poucas pessoas sabem o que representa a Valentina (a minha fada), e menos pessoas ainda sabem o verdadeiro significado das minhas estrelas. A relação entre as minhas duas tatuagens é uma coisa tão íntima que acho que nunca tive coragem de explicar de verdade para ninguém, porque eu me sentiria completamente vulnerável, compartilhando algo tão meu.

Tatuagem não muda caráter. Tatuagem não muda comportamento. Tatuagem não muda quem você é. Eu costumo dizer que tatuagem vem de dentro para fora; é algo que estava no seu corpo representando uma parte de você, mas só se tornou visível para o mundo depois que você sentou na cadeira do tatuador.
A Valentina é exatamente assim. Quando um dia me perguntaram como era a sensação de finalmente ter uma tatuagem eu respondi “normal, porque eu sinto como se ela sempre tivesse estado ali exatamente onde está, desde o começo.”


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